29 julho, 2018

Melhor saúde para todos os portugueses

Um Serviço Nacional de Saúde para o Século 21 


1. Sistemas de saúde como o resultado de percursos históricos 


Os sistemas de saúde da atualidade resultam de uma evolução histórica que reflete a interação de múltiplos fatores políticos, sociais, económicos, cultuais e técnico-científicos. Não se desenham arbitrariamente. 

Nos países europeus que se industrializaram primeiro, o “seguro social” é a herança do contrato social da revolução industrial. No Reino Unido, a II Grande Guerra levou à criação de instituições de caráter nacional, que o clima político do pós-guerra ajudou a consolidar, dando origem ao Serviço Nacional de Saúde inglês. Nos países nórdicos, tradicionalmente descentralizados, os municípios assumiram, desde muito cedo, o financiamento e a gestão dos serviços sociais e de saúde. Nos Estados Unidos, circunstâncias históricas conhecidas, deram origem a um “sistema” de saúde, fragmentado, tecnicamente avançado e socialmente controverso.  
No Sul da Europa, industrializado mais tardiamente e menos extensamente, o “seguro social” autónomo manifestou-se insuficiente, sem a contribuição do Estado, através dos impostos. Este foi também chamado a criar e desenvolver as necessárias infraestruturas de prestação de cuidados de saúde. A transição de regimes autoritários, assistencialistas, para a democracia, ocorrida há quase meio século, criou as condições para a adoção de soluções universalistas, como é o caso do Serviço Nacional de Saúde (SNS) português. 
O nosso SNS nasceu, na década de 70, com a democracia e é, muito provavelmente, o seu maior sucesso. Tornou-se, no decurso de quatro décadas, um património de todos, um eixo estruturante e identitário da sociedade portuguesa.  

 2. Lei de Bases da Saúde – Os principais desafios


Neste contexto, uma nova Lei de Bases da Saúde deve reafirmar o SNS como a principal referencia do sistema de saúde português, consagrado na Constituição da República Portuguesa, e estabelecer claramente os princípios que regem o bom desempenho deste sistema, que a seguir se enumeram.


Primeiro: Proteção e promoção da saúde


A necessidade de proteger e promover a saúde é politicamente consensual, mas particularmente complexa na sua formulação e implementação. 
Neste domínio, são especialmente relevantes (a) o desenho e implementação de uma estratégia de saúde, particularmente a nível local, (b) a estreita colaboração da saúde com outros sectores, sociais e económicos e (c) a antecipação, monitorização e avaliação do impacto das outras políticas públicas sobre a saúde. A Lei de Bases deve assegurar que estas contribuições críticas para a  proteção e promoção da saúde, aconteçam efetivamente.   


Segundo: Sistema de saúde – os três sectores 


O sistema de saúde é constituído por três sectores: o público, o privado social e o privado com fins lucrativos.
Cada um destes sectores tem a sua natureza e especificidade, amplamente reconhecidas. A cooperação entre estes sectores é útil e necessária e existem exemplos de que isso é possível e desejável.


Terceiro: Serviço Nacional de Saúde


A Lei de Bases da Saúde deve proporcionar ao SNS um enquadramento genérico sobre o seu desenvolvimento, que deve incidir nos seguintes aspetos:     
(a) Acesso aos cuidados de saúde: há que acentuar a importância das normas de garantia de acesso aos cuidados de saúde de qualidade (tempos máximos de resposta garantidos). No que diz respeito às taxas moderadoras, estas só se justificam quando é possível demonstrar que têm uma ação positiva na moderação da utilização desnecessária de cuidados de saúde, e que esta moderação não pode ser obtida de forma mais eficaz e com menos riscos de afetar o acesso necessário a cuidados de saúde. As “falsas taxas moderadoras”, aquelas que não dependem da vontade do utilizador (são efetivamente copagamentos), não devem continuar a ser toleradas.  
(b) Organização e gestão do SNS – os profissionais de saúde: Terá que se investir na qualidade e na integração dos cuidados de saúde e na sua articulação com o sector social, na boa gestão e inovação técnica e tecnológica e na qualidade das suas lideranças. Mas, para que isso seja possível, é essencial assegurar que o SNS cuida dos seus profissionais – das suas condições de trabalho e remuneração, da sua formação contínua, premiando o mérito e a continuidade, desencorajando relações de precariedade que afetam a qualidade dos cuidados prestados. 


Quarto: Financiamento da saúde e a Estratégia Orçamental


O financiamento da saúde é uma questão de importância crítica. É necessário incluir explicitamente objetivos de saúde na Estratégia Orçamental do país. Isso terá que ser feito no quadro do processo político que harmoniza as políticas públicas – financeiras, económicas e sociais – em Portugal, com as consequentes implicações no contexto europeu. 


Quinto: Financiamento público dos cuidados de saúde  


Esta é uma questão que, pelas suas consequências, requer que os agentes políticos se posicionem de uma forma clara. 
É preciso dizer claramente que o financiamento público deve privilegiar, primeiramente, o SNS e secundariamente, de forma justificada, objetiva e transparente face às necessidades do sistema de saúde como um todo, o sector social e o privado com fins lucrativos. 
O contraponto a esta proposição fundamental, aparece sob a forma de um “mercado aberto” em que público e privado concorrem, em iguais circunstâncias, ao financiamento público da saúde, como se fossem da mesma natureza, sem qualquer especificidade particular.  
Sendo o SNS a expressão de uma política pública maior, é dever do Estado investir no SNS os recursos e a inteligência necessários para que este tenha a melhor qualidade possível, melhorando-o continuamente a partir da experiência adquirida. Essa obrigação não é compatível com a ideia de “jogar o seu destino no mercado”. Abandonar o SNS nesse “mercado”, não investindo no seu desenvolvimento, resultaria, em pouco tempo, num serviço público residual, de má qualidade, fazendo tão-somente o que é menos atraente para outrem. A escolha é um valor fundamental no mundo de hoje, que há que privilegiar em todas as oportunidades. Há que recordar no entanto que, quando se trata de “recursos comuns”, no âmbito do “contrato social da saúde”, os padrões de escolha de alguns, agora, não podem legitimamente induzir efeitos sistémicos, que, a prazo, afetam as escolhas de todos. 


Sexto: Boa Governança em Saúde – o papel dos cidadãos 


A Lei de Bases da Saúde terá que assegurar que o sistema de saúde deve reger-se segundo os princípios da boa governança: transparência, inclusão, participação dos cidadãos, cooperação entre sectores, antecipação de riscos e oportunidades, avaliação e aprendizagem contínuas e responsabilização efetiva de todo os agentes da saúde pelo seu desempenho. A aplicação destes princípios implica, pelo menos, o seguinte: 

    - Avaliação do desempenho do SNS a cada dois anos;
    - Antecipação dos efeitos previsíveis e monitorização, análise e publicitação dos efeitos observados (no sistema de saúde e no SNS), de todas as modalidades de prestação privadas com financiamento público, segundo periodicidade a explicitar para cada caso.

Esta análise e publicitação da aplicação dos princípios de boa governança, deve ser efetuada por entidades tecnicamente idóneas para o efeito, independentes de interesses políticos e económicos e sujeita a contraditório público. 


3. O momento atual: Lei de Bases da Saúde como enquadramento necessário para o SNS do Século 21


As políticas de “ajustamento económico e financeiro”, aplicadas ao país no decurso desta década, enfraqueceram consideravelmente o SNS. A opção agora é clara: permitir que essa degradação se torne definitiva ou lançar as bases do SNS do Século 21.

Deixar perder este património comum por percalço ideológico ou para a conveniência dos “mercados da saúde”, empobrecerá o país nos seus traços verdadeiramente diferenciadores e deixará uma parte importante da população portuguesa mais indefesa perante os infortúnios da doença e das suas legitimas aspirações a uma boa saúde.

Os subscritores (88+)

Adelino Fortunato, prof. U. Coimbra 
Alcino Maciel Barbosa, médico
Anabela Paixão, médica
Ana Drago, socióloga 
Ana Escoval, economista, 
Ana Jorge, médica
Ana Madeira, médica
Ana Matos Pires, médica
Ana Paula Gato, prof. IP. Setúbal

Álvaro Pereira, médico 
António Faria Vaz, médico
António Gomes Branco, médico
António Leuschner, médico
António Rodrigues, médico
Arnaldo Araújo, médico
Armando Alcobia, farmacêutico

Beatriz Craveiro Lopes, médica
Bernardo Vilas Boas, médico

Carlos Gouveia Pinto, prof. U. Lisboa
Carlos Nunes, médico
Carlos Salgueiral, mutualista 
Carminda Morais, prof. IP. Viana do Castelo
Celeste Gonçalves, médica
Cipriano Justo, médico 
Constantino Sakellarides, prof. UN. Lisboa 
Cristina Correia, enfermeira

Daniel Oliveira, jornalista
Eunice Carrapiço, médica

Fernando Esteves Franco, médico
Fernando Palouro, jornalista
Filipe Froes, médico
Filipe Rosas, médico
Fernando Noguerinha Cardoso, professor
Francisco Crespo, médico

Guadalupe Simões, enfermeira
Helena Lopes da Silva, médica
Henrique Botelho, médico
Henrique Barros, prof. U. Porto
Isabel Abreu, farmacêutica

João Correia da Cunha, médico
João Filipe Raposo, médico
João Goulão, médico
João Lavinha, investigador
João Rodrigues, médico
José Aranda da Silva, farmacêutico
José Carlos Santos, prof. ESEnf. Coimbra
José Dias, técnico turismo
José Guimarães Morais, prof. U. Lisboa
José Loureiro dos Santos, general
José Luís Biscaia, médico
José Luiz Medina, prof. U. Porto
José Manuel Boavida, médico
José Poças, médico
José Sousa Lobo, prof. U. Porto
Jorge Espírito Santo, médico
Júlio Machado Vaz, prof. UP


Luís Castelo-Branco, médico
Luiz Gamito, médico
Luiz Gardete, médico
Luís Nunes, médico
Luís Tenreiro da Cruz, engenheiro

Manuel Carvalho da Silva, investigador
Manuel Lopes, prof. U. Évora
Manuel Martins Guerreiro, almirante
Manuel Oliveira, enfermeiro
Manuel Pizarro, médico
Manuel Schiappa, médico
Manuel Sobrinho Simões, prof. U. Porto
Manuela Vieira da Silva, médica
Margarida Gaspar de Matos, prof. U. Lisboa
Maria Abreu Cruz, médica
Maria Augusta Sousa, enfermeira
Maria da Conceição Rodrigues dos Santos, enfermeira
Maria Eugénia Santiago, farmacêutica
Maria José Vitorino, professora
Maria Margarida Filipe, enfermeira
Maria Rosário Gama, professora
Miguel Maya, médico

Odete Isabel, farmacêutica
Octávio Cunha, médico 

Paula Broeiro, médica
Paulo Fidalgo, médico
Paulo Sucena, professor
Pedro Bacelar de Vasconcelos, constitucionalista
Pedro Ferreira, prof. U. Coimbra
Pedro Macedo, médico
Pedro Pezarat Correia, general

Ricardo Pais Mamede, economista
Rita Correia, psicóloga
Rui Bastos Santos, enfermeiro
Rui Lourenço, médico
Rui Monteiro, médico
Rui Sarmento e Castro, médico
Rui Tavares, historiador

Teresa Gago, médica
Teresa Laginha, médica
Vítor Gameiro, médico

Vítor Ramos, médico